O bem de família do fiador em contrato de locação comercial
“O bem de família do fiador em contrato de locação comercial”
Em 2018, por três votos a dois, a 1ª turma do STF deu provimento ao RE 605.709/SP, declarando a incompatibilidade da penhora do bem de família do fiador, dado como garantia em contrato de locação comercial, frente ao direito constitucional à moradia.
Ou seja, declarou-se que a previsão do art. 3º, VII, da lei 8.009/90, que permite a penhora de bem de família para satisfazer fiança concedida em contrato de locação, não abrange os contratos de locação comercial. A Ministra Rosa Weber, que compôs a corrente vencedora, em conjunto com os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux, esclareceu que a jurisprudência consolidada pelo Plenário da Corte (RE 407.688/AC e RE 612.630/SP) determina a penhora do bem de família do fiador somente nos casos de contrato de locação residencial, e não comercial.
O fundamento predominante da corrente vencedora consiste no direito social à moradia, disposto no artigo 6º da Constituição Federal, inserido pela EC 26/00, e que a penhora do bem de família do fiador seria demasiada, haja vista que é preciso garantir o mínimo existencial.
A referida decisão ainda não transitou em julgado porque foram opostos embargos de divergência. Além disso, não se reconheceu a repercussão geral do recurso extraordinário, uma vez que foi interposto antes mesmo da regulamentação do instituto processual.
Para uma análise crítica deste caso, é preciso considerar os incontáveis casos judiciais que ainda tramitam e abordam a impenhorabilidade do bem de família do fiador. Sob o ponto de vista processual, nota-se a incongruência da Corte em deixar de submeter o caso para apreciação de sua eventual repercussão geral (fls. 378 do acórdão). A ausência de efeitos erga omnes na decisão final, seja favorável ou não à impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato comercial, pode resultar em decisões díspares por tribunais de todo o país, afetando o direito fundamental à igualdade.
Sob o ponto de vista material, é preciso destacar, inicialmente, que a lei não contém todo o direito, e que este, por sua vez, deve ser interpretado segundo dados da realidade. O julgador que se presta a analisar somente a letra fria da lei, sem considerar a complexidade do ordenamento jurídico e as circunstâncias fáticas, fará exame inadequado do caso, com consequências graves para uma das partes.
Assim, é fato que o art. 3º, VII, da lei 8.009/90 determina que pode ser objeto de penhora o bem que foi dado como fiança em contrato de locação, o que não significa que deva ser aplicado pura e simplesmente, sem considerar os primados normativos posteriores e a conjuntura jurídico-social. Desde 1990, até os dias de hoje, alterações legislativas relevantes contribuíram para adensar a constitucionalização do direito civil, em especial, a maturação da Constituição Federal de 1988 e a promulgação do Código Civil de 2002.
Nesta seara, especificamente, a EC 26/00 atribuiu status constitucional ao direito à moradia, consagrado como direito social no art. 6º da Constituição Federal; e o Código Civil de 2002 reforçou o primado da função social da propriedade, cujo abrangente conceito deve englobar o imóvel residencial da família, posto que destinado essencialmente ao basilar direito à moradia.
O direito mudou e a interpretação das leis, por esta via, também merece reflexão. Em nossa opinião, o STF acertou ao primar pela aplicação do preceito constitucional. Ao processar o recurso extraordinário e declarar a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial, tem-se interpretação de acordo com as alterações normativas e circunstâncias fáticas. Não é razoável, tampouco aceitável, que os fiadores percam seus imóveis de família, e não tenham onde morar, pois nesses casos não há outro imóvel para saldar a dívida. O direito não deve servir para aprofundar, ainda mais, as desigualdades latentes do nosso país.
Ainda sob o ponto de vista prático, é preciso destacar que é comum que os contratos de locação comercial prevejam duas modalidades de garantia: a fiança e a caução (hipoteca do imóvel). A combinação de mais de uma modalidade de garantia deve resultar na declaração de nulidade da cláusula contratual, conforme determinação do art. 37, parágrafo único, da lei 8.245/91. Esta ilegalidade favorece os credores nos processos de execução, pois pedem diretamente a penhora do imóvel familiar do fiador. Além disso, o valor da dívida pode ser inferior ao valor do imóvel, mas aumenta exponencialmente com os juros abusivos, custas judiciais e desestímulos para celebrar acordos.
É claro que o credor deve ter direito a ter seu crédito satisfeito, porém o judiciário deve prover meios para facilitar composição amigável, em várias fases do processo, e que sejam menos gravosas às partes devedoras e fiadores. Outros bens, que não os imóveis de família, devem, evidentemente, ser objeto de penhora e submetidos à adjudicação ou à leilão. A decisão do STF, portanto, não inviabiliza o recebimento do crédito, mas serve como baliza para racionalizar o processo de execução e pugnar pela aplicação dos direitos constitucionais.
Fonte: Migalhas